Lucy Letby, ex-enfermeira da unidade neonatal do hospital Countess of Chester, permanece no centro de um debate sobre a confiabilidade das provas que levaram à sua condenação por sete homicídios e sete tentativas de homicídio cometidos entre 2015 e 2016. Enquanto o júri a considerou culpada após um julgamento de dez meses, sua nova equipe de defesa, liderada pelo advogado Mark McDonald, afirma possuir relatórios de especialistas que contestam a existência de qualquer dano deliberado aos bebês.
Os pareceres foram entregues à Criminal Cases Review Commission (CCRC), órgão que decide se o processo pode ser reaberto na Corte de Apelação. McDonald divulgou apenas resumos dos documentos, alegando que um “painel de especialistas de renome mundial” não identificou provas de intenção criminosa. A discussão ganhou destaque porque, mesmo nos casos em que o júri chegou a veredictos unânimes, surgem inconsistências tanto na acusação quanto na defesa.
O caso do Bebê O
Entre os veredictos unânimes está o do Bebê O, um dos trigêmeos nascidos em junho de 2016. A promotoria sustentou que a morte resultou, em parte, de lesões hepáticas classificadas como “de impacto”, comparáveis às observadas em acidentes automobilísticos. Contudo, um patologista pediátrico que analisou o laudo post-mortem, mas não participou do julgamento, considera improvável que a localização e o aspecto do tecido sejam compatíveis com trauma de impacto.
Além das lesões no fígado, a promotoria apontou a hipótese de embolia aérea provocada por injeção de ar na corrente sanguínea. Um estudo de 1989, citado no tribunal, relacionava a condição a alterações de cor da pele em recém-nascidos prematuros. Hoje, um dos autores da pesquisa, o neonatologista canadense Shoo Lee, integra o time da defesa e afirma que a descoloração cutânea não foi descrita quando o ar entra pelas veias – mecanismo alegado contra Letby. A acusação, por sua vez, argumenta que esse sinal não foi o único elemento usado para sustentar a tese da embolia.
A controvérsia aumentou quando a professora de medicina neonatal Neena Modi, também componente do painel da defesa, reconheceu indícios pós-mortem de embolia aérea em alguns bebês, mas atribuiu o fenômeno a manobras de reanimação, classificando a teoria de homicídio como especulativa. O desacordo interno indica ausência de consenso mesmo entre os peritos que contestam a condenação.
A hipótese da perfuração por agulha
Em dezembro de 2024, o patologista forense Richard Taylor declarou em coletiva que um médico teria perfurado o fígado do Bebê O durante a reanimação, desencadeando a morte. O profissional citado, Stephen Brearey, não comentou, alegando investigação em curso. Taylor, porém, não teve acesso aos prontuários completos e baseou-se num relatório elaborado por outros especialistas.
A possibilidade de perfuração havia sido debatida no julgamento e rejeitada pela acusação. Outro patologista pediátrico consultado posteriormente confirmou inexistência de sinal de agulha no tecido hepático e destacou que as lesões estavam distribuídas em regiões diferentes do órgão. Mesmo Taylor reconhece que, ainda que a agulha tenha penetrado o fígado, tal fato não explicaria o colapso inicial, ocorrendo apenas no fim das tentativas de ressuscitação.

Imagem: bbc.com
Entre os próprios defensores de Letby, o diagnóstico diverge. O neonatologista Neil Aiton, coautor do relatório utilizado por Taylor, atribui as lesões a reanimação inadequada, citando hiperinsuflação pulmonar. Para ele, a perfuração pode ter acontecido, mas não seria determinante. Um resumo recente do painel menciona que uma agulha “pode” ter atingido o fígado, recuando em relação à afirmativa original.
Outra explicação aventada pela defesa sustenta que os danos hepáticos derivariam de trauma no parto. Modi considera essa causa “altamente plausível”. Entretanto, Mike Hall, primeiro perito contratado pela defesa e presente em todo o julgamento, descarta a teoria: o bebê nasceu por cesariana em boas condições e não há registro de parto traumático. Hall mantém a posição de que não há evidência de intenção malévola, mas admite que a origem exata do colapso permanece sem elucidação.
Os testes de insulina nos Bebês F e L
Os demais veredictos unânimes referem-se aos Bebês F e L, supostamente envenenados com insulina. A promotoria citou exames sanguíneos como prova conclusiva. A defesa questiona a precisão do imunoensaio utilizado e argumenta que prematuros poderiam apresentar níveis semelhantes naturalmente. Mesmo assim, especialistas ligados à própria Letby reconhecem confiabilidade de cerca de 98% no método, e outros neonatologistas afirmam que a tese contraria o conhecimento científico predominante. Até o momento, os estudos que respaldariam essa contestação não foram divulgados pela equipe de McDonald.
Próximos passos
Cabe agora à CCRC avaliar se os relatórios apresentados justificam reabrir o processo. Caso o órgão encaminhe o dossiê à Corte de Apelação, as divergências entre peritos de acusação e defesa serão reexaminadas em detalhes. Enquanto isso, o caso Letby continua a evidenciar como interpretações médicas conflitantes podem influenciar decisivamente o destino de um julgamento criminal.