O Departamento de Estado dos Estados Unidos divulgou, após vários meses de atraso, a nova versão do relatório anual sobre violações de direitos humanos em todo o mundo. O documento, tradicionalmente considerado um dos estudos governamentais mais amplos e detalhados sobre o tema, foi substancialmente reescrito durante a gestão do ex-presidente Donald Trump, com cortes de conteúdo, mudanças na ênfase crítica a determinados países e eliminação de tópicos inteiros presentes em edições anteriores.
Até a revisão promovida pelo governo Trump, o relatório funcionava como referência para organizações internacionais, parlamentares e acadêmicos na avaliação de práticas estatais relacionadas a liberdade de expressão, participação política, integridade eleitoral, combate à corrupção e proteção de minorias. A nova edição, entretanto, apresenta cobertura reduzida sobre alguns desses assuntos e distribui as observações de maneira diferente entre aliados históricos e nações consideradas adversárias pela administração passada.
Entre as alterações mais notáveis, o documento diminui a intensidade de críticas a Israel e El Salvador, países que mantiveram relação próxima com Washington durante o mandato de Trump. Por outro lado, amplia apontamentos negativos contra Brasil e África do Sul, classificados como governos que, segundo a publicação, teriam intensificado restrições a opositores ou a membros da sociedade civil. Especialistas apontam que essa redistribuição do escrutínio rompe com a prática de análises mais uniformes adotada em administrações anteriores.
Seções específicas, antes dedicadas a corrupção governamental, crimes de gênero e perseguição de pessoas LGBTQ+, foram totalmente suprimidas ou condensadas. A exclusão desses capítulos provoca preocupação em organizações de defesa dos direitos humanos, que utilizavam os dados para monitorar avanços ou retrocessos em cada país e fundamentar recomendações a organismos multilaterais.
Autoridades do Departamento de Estado justificam a reestruturação afirmando que o intuito foi “remover redundâncias” e “aumentar a legibilidade”. Segundo porta-vozes, o enxugamento tornou o relatório “mais objetivo” e alinhado às prioridades estratégicas do governo de então.
A publicação também declara que a situação dos direitos humanos “se deteriorou” em importantes democracias europeias, incluindo Reino Unido, França e Alemanha. O texto critica leis recentes voltadas à moderação de conteúdo online, classificando-as como potenciais ameaças à liberdade de expressão — argumento que coincide com posicionamentos já manifestados por Trump e por alguns executivos do setor de tecnologia dos EUA, contrários a regulamentações sobre discurso nas redes sociais.
Para Uzra Zeya, ex-funcionária de alto escalão do Departamento de Estado e atual dirigente de uma entidade de defesa dos direitos humanos, a mudança representa o esvaziamento de décadas de trabalho considerado referência mundial. Ela vê na nova abordagem um sinal de que Washington estaria disposto a relevar abusos em troca de alinhamento político.

Imagem: bbc.com
Fontes internas relatam que a elaboração do texto enfrentou forte dissenso entre diplomatas de carreira e assessores indicados politicamente. Diretrizes internas distribuídas no início do ano instruíram equipes a encurtar capítulos e omitir referências a corrupção e crimes motivados por gênero, seguindo ordens executivas assinadas por Trump que redefiniram prioridades de política externa.
A revisão do documento também reflete declarações do ex-presidente durante visita à Arábia Saudita, quando afirmou que os Estados Unidos deixariam de “dar sermões” sobre a forma como outros países devem se governar. Para analistas, o discurso consolidou uma mudança de postura que se materializou na versão final do relatório.
Em paralelo, dados de outras organizações indicam alta no número global de execuções, atingindo o maior patamar desde 2015. Relatório recente das Nações Unidas aponta que o Irã executou pelo menos 901 pessoas em 2024, consolidando uma tendência de recrudescimento das punições capitais em diferentes regiões.
Com o lançamento da nova edição, especialistas avaliam que o relatório norte-americano perde parte de seu alcance original, reduzindo a pressão histórica exercida por Washington sobre governos estrangeiros. A publicação, agora menos extensa e com foco modificado, marca uma inflexão na tradicional política de promoção de direitos humanos adotada pelos Estados Unidos em décadas anteriores.